Espuma dos dias – Sobre o futuro do Sistema Monetário Internacional: uma verdadeira incógnita — Texto 6. Chegou a hora de um novo Bretton Woods. Por Rana Foroohar

 

Nota de editor:

Com a atual guerra na Ucrânia e, em particular, com as sanções económicas e financeiras sobre a Rússia os comentaristas e analistas têm-se debruçado sobre as eventuais consequências de tais medidas sobre o estatuto do dólar enquanto moeda de reserva mundial e de moeda preferencial nas trocas internacionais. A propósito deste tema organizámos uma série de 13 textos, “Sobre o futuro do Sistema Monetário Internacional: uma verdadeira incógnita”. Publicamos hoje o sexto texto – “Chegou a hora de um novo Bretton Woods de Rana Foroohar.

É o ponto de vista dos neoliberais neste texto de Rana Foroohar: as regras continuamos nós a fazê-las. As democracias liberais – leia-se o comando unilateral por parte dos EUA – que nos trouxeram ao ponto de ruptura em que estamos não querem perder o domínio político, económico e financeiro de que têm disfrutado mundialmente. Afirmações como “a política comercial dos EUA já não envolveria apenas deixar os mercados entregues a si próprios, mas manteria certos princípios” e “Os países não deveriam ser autorizados a utilizar a sua “posição de mercado em matérias-primas, tecnologias ou produtos chave para terem o poder de perturbar a nossa economia ou exercer uma influência geopolítica indesejada” seriam risíveis não fosse saber-se de antemão que as mesmas se traduzem na utilização da moeda como arma, em última instância, das próprias armas (ainda que por procuração) para impor as suas particulares regras e valores.

Como resulta da leitura dos textos desta série, o futuro do sistema monetário e financeiro internacional é um tema sobre o qual ninguém é capaz de dizer de seguro seja o que for. O resultado final da atual guerra na Ucrânia, que não se sabe quando terminará, nem como terminará, certamente influenciará a evolução do sistema monetário internacional e o papel do dólar no sistema, mas tão importante quanto a guerra em curso e a forma como terminará é igualmente saber qualquer será o comportamento dos beligerantes de peso, os EUA e a URSS no pós guerra. Os exemplos históricos assustam.

Neste contexto, perspetivar o futuro face ao enorme nevoeiro que se tem pela nossa frente é difícil. Disto mesmo damos conta pelos textos que publicamos onde se torna visível que o processo é influenciado por múltiplos fatores, nomeadamente decisões impossíveis de prever, o que tornam as previsões naquilo que verdadeiramente são: previsões.


Seleção e tradução de Francisco Tavares

10 m de leitura

Texto 6. Chegou a hora de um novo Bretton Woods

 Por Rana Foroohar

Publicado por  em 18 de Abril de 2022 (original aqui)

 

© Matt Kenyon

 

Mercados globais livres e justos requerem valores partilhados

 

Janet Yellen, a Secretária do Tesouro dos EUA, fez algo importante e, na sua maioria, pouco difundido na semana passada. Ela fez a ligação do comércio aos valores.

Num discurso pronunciado no Atlantic Council em Washington, a secretária apelou a um novo quadro de Bretton Woods e a uma reformulação das instituições do FMI e do Banco Mundial, ambas as quais estão a realizar as suas reuniões anuais esta semana.

Ela também deixou claro que a guerra de Vladimir Putin na Ucrânia e o facto de a China não se ter juntado aos EUA e a mais de 30 outras nações em sanções contra a Rússia foi um ponto de inflexão para a economia global.

No futuro, a política comercial dos EUA já não envolveria apenas deixar os mercados entregues a si próprios, mas manteria certos princípios – desde a soberania nacional e uma ordem baseada em regras até à segurança e aos direitos laborais. Como ela disse, o objectivo da América não deveria ser apenas “comércio livre mas seguro”.

Os países não deveriam ser autorizados a utilizar a sua “posição de mercado em matérias-primas, tecnologias ou produtos chave para terem o poder de perturbar a nossa economia ou exercer uma influência geopolítica indesejada”. Isto foi claramente uma referência à petropolítica russa, mas poderia igualmente abranger o fabrico de chips de Taiwan ou o açambarcamento de minerais de terras raras pela China ou, durante a pandemia, o equipamento de protecção pessoal.

Yellen cunhou uma nova palavra para esta era pós-neoliberal: “escoramento-amigável” [friend-shoring]. Os EUA favoreceriam agora “a partilha amigável de cadeias de abastecimento com um grande número de países de confiança” que partilham “um conjunto de normas e valores sobre como operar na economia global”. Também procuraria criar alianças baseadas em princípios em áreas como os serviços digitais e a regulação tecnológica, semelhantes ao acordo fiscal global do ano passado (que ela liderou).

Isto não é a América Sozinha ou mesmo a América Primeiro. Mas reconhece a existência de uma economia política em que o comércio livre só pode realmente ser livre se os países operarem com valores partilhados e em igualdade de condições.

Isso é simultaneamente diferente – e, em alguns aspectos cruciais, não – da era neoliberal que está a passar. O termo “neoliberalismo” foi usado pela primeira vez em 1938, no Colóquio Walter Lippmann em Paris, uma reunião de economistas, sociólogos, jornalistas e empresários que queriam encontrar uma forma de proteger o capitalismo global do fascismo e do socialismo.

Foi um momento que coincidia com o nosso em muitos aspetos. A Europa tinha sido desfeita pela primeira guerra mundial. Uma década de política monetária fácil até 1929 não tinha sido capaz de esconder as grandes mudanças políticas e económicas que tinham criado enormes clivagens nas sociedades. Os mercados de trabalho e as estruturas familiares estavam a mudar. Uma pandemia, inflação, depois a depressão económica, deflação e guerras comerciais tinham deixado o continente economicamente destroçado.

Os neoliberais queriam resolver estas questões ligando os mercados globais. Eles acreditavam que se o capital e o comércio estivessem ligados através de uma série de instituições que pudessem flutuar sobre estados nacionais individuais, o mundo teria menos probabilidades de cair na anarquia.

Durante muito tempo, esta ideia funcionou, em parte porque o equilíbrio entre os interesses nacionais e a economia global não se desregulou demasiado. Mesmo durante a era Reagan-Thatcher na década de 1980, ainda havia a sensação de que o comércio global, em particular, precisava de servir o interesse nacional. Como presidente dos EUA, Ronald Reagan pode ter sido um livre-cambista, mas utilizou tarifas contra o Japão e também apoiou a política industrial (como fez, e faz, a maioria das outras nações asiáticas e muitas outras europeias).

Nos EUA, isso começou a mudar durante a administração Clinton, que orquestrou uma série de acordos de comércio livre culminando com a entrada da China na Organização Mundial do Comércio em 2001, na esperança de que o país se tornasse mais livre à medida que enriquecesse. Isso, é claro, não aconteceu. E agora, finalmente, os líderes em todo o lado reconhecem a realidade do problema “um mundo, dois sistemas”.

Yellen diz que espera que “não acabemos com um sistema bipolar”, particularmente dado o quanto a própria China tem beneficiado do sistema neoliberal. “Mas surgiram problemas reais”, reconhece ela. “A China depende em muitos aspectos de empresas estatais e envolve-se em práticas que eu penso que prejudicam injustamente os nossos interesses de segurança nacional”. As cadeias de abastecimento multinacionais, “embora se tenham tornado muito eficientes e excelentes na redução dos custos empresariais, não têm sido resilientes”. Ambas as questões, diz ela, devem ser enfrentadas.

A encruzilhada actual não é diferente daquela que enfrentaram os pensadores neoliberais que criaram o sistema original de Bretton Woods. Eles começaram não com uma ideia de mercados de laissez-faire a funcionar por si próprios, mas sim com um problema muito humano – como remendar juntos um mundo dilacerado pela guerra para tornar uma sociedade mais segura e mais coesa, uma sociedade em que a independência, a liberdade e a prosperidade seriam garantidas. Os mercados não conseguiriam fazê-lo sozinhos. Eram necessárias novas regras.

É precisamente aí que nos encontramos agora. Pode-se argumentar, como eu argumentaria, que uma mudança de pêndulo é necessária. O capitalismo global tem, nos últimos 20 anos em particular, simplesmente ultrapassado demasiado as preocupações internas de alguns Estados-nação individuais. Países com quadros políticos, económicos e mesmo morais extremamente diferentes não jogaram todos com as mesmas regras globais. Nessas circunstâncias, os mercados justos e livres começam a desmoronar-se.

O processo de criação de um novo Bretton Woods só agora começou. Mas começar com os valores que as democracias liberais querem defender é um bom ponto de partida.

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A autora: Rana Foroohar [1970 – ] é colunista de negócios americana e editora associada do Financial Times. É também a analista económica global da CNN. É licenciada em Literatura Inglesa pela Faculdade Barnard em 1992. Publicou já os seguintes livros: Makers and Takers: The Rise of Finance and the Fall of American Business (2016) e Don’t Be Evil: How Big Tech Betrayed Its Founding Principles – and All of Us (2019).

 

3 Comments

  1. De longe, o pior texto desta série. Sem dados, sem factos, com reescrita da história, com aldrabice e manipulação, uma cascata de termos ideológicos que mostram o umbiguismo ocidental e até neocolonialismo e um extremismo ideológico Neoliberal.

    Não se podia esperar mais de uma fonte do Finantial Times e da CNN e dos EUA. Porque é que incluíram esta aberração nesta série de bons textos?

  2. Caro leitor Carlos Marques,
    Sem querer polemizar, refiro apenas que os autores da série também debateram sobre a inclusão ou não do texto.
    Conforme a nota de introduçao realça este texto de Rana Foroobar é o “ponto de vista dos neoliberais (…) : as regras continuamos nós a fazê-las. As democracias liberais – leia-se o comando unilateral por parte dos EUA – que nos trouxeram ao ponto de ruptura em que estamos não querem perder o domínio político, económico e financeiro de que têm disfrutado mundialmente. Afirmações como “a política comercial dos EUA já não envolveria apenas deixar os mercados entregues a si próprios, mas manteria certos princípios” e “Os países não deveriam ser autorizados a utilizar a sua “posição de mercado em matérias-primas, tecnologias ou produtos chave para terem o poder de perturbar a nossa economia ou exercer uma influência geopolítica indesejada” seriam risíveis não fosse saber-se de antemão que as mesmas se traduzem na utilização da moeda como arma, em última instância, das próprias armas (ainda que por procuração) para impor as suas particulares regras e valores”.
    E não nos parece que apresentar esse ponto de vista deslustre a série, pelo contrário e por contraste, cremos que proporciona aos leitores uma melhor visão sobre a apregoada mudança de paradigma do sistema monetário internacional e queda da dominância do dólar. O texto de Foroobar é a visão pura e dura, ideológica, do neoliberalismo.
    Afinal é a prevalência da ordem existente, como defendem alguns dos autores já publicados (vg. Charles H Smith, Megan Greene) e como em textos a sairem mais adiante defende G Friedman, e de algum modo Werrebrouck.

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